domingo, 12 de abril de 2020

Páscoa, uma escrava perseguida pela Inquisição católica

Hoje é dia de Páscoa e iremos falar sobre ela, mas não a Páscoa que vocês estão acostumados a ouvir. Essa história fala de uma escrava angolana, chamada Páscoa, que foi castigada ao ser vendida para o Brasil e sofreu perseguição da Inquisição da Igreja Católica por ousar se casar novamente em Salvador. Naquele período, a Igreja tinha adaptado as regras de casamento de acordo com colônia brasileira.
Charlotte Castelnau-L’Estoile é a responsável por contar essa história em seu livro “Páscoa et ses deux maris: une esclave entre Angola, Brésil et Portugal au XVIIe siècle” (tradução livre, “Páscoa e seus dois maridos: uma escrava entre Angola, Brasil e Portugal no século 17”). A historiadora buscou arquivos brasileiros e portugueses para entender como a Inquisição portuguesa atuava entre o Brasil e a Angola de forma punitiva.
Páscoa nasceu por volta de 1660, em Massangano, Angola. Aos 26 anos de idade, foi vendida ao Brasil, mais precisamente na Bahia. Na época, ela foi acusada de bigamia, pois havia sido casada na Angola e já no Brasil, casou-se novamente. Seu próprio senhor foi quem a denunciou.



Capa do livro - Foto: reprodução da internet


Como a Igreja Católica e a Coroa portuguesa atuavam nos casamentos
Em entrevista ao site RFI, uma rádio francesa de notícias, Charlotte conta que mesmo havendo poucas informações sobre como era a vida dos povos africanos que vieram como escravos para o Brasil, o inquérito da Inquisição trazia muitas informações sobre a vida de Páscoa na África.
Embora o escravo tivesse direito à vida matrimonial, podendo escolher com quem casar, isso não acontecia muito na prática. Dependia mais da vontade do seu senhor.
Páscoa foi perseguida durante sete anos pela Igreja Católica. Tanto a Igreja quanto a Coroa portuguesa visavam uma sociedade nas colônias que fosse 100% católica, por isso os ensinamentos sobre casamento pesavam tanto. Páscoa servia como exemplo por uma questão de princípios. Sua perseguição era pra mostrar aos escravos, senhores e até mesmo padres que o casamento era um ato de respeito a ser seguido. “O casamento católico era único e indissolúvel”, afirma Charlotte Castelnau-L’Estoile.
O segundo marido de Páscoa, Pedro, com quem havia se casado no Brasil, também era escravo. Ele era natural da Costa do Benin. Pedro foi obrigado a se separar de Páscoa quando foi vendido para outro senhor justamente por ela ter sido denunciada. Embora separados, ambos conseguiram documentos angolanos, graças a mãe de Páscoa, para a reuni-los em forma de um contra-processo. Nesta parte da entrevista, Charlotte conta sobre as relações entre a Angola e o Brasil.
“Isso mostra que tinha tantas relações entre a Angola e o Brasil neste período que uma simples escrava podia mandar recados, com certeza orais, pois ela não escrevia. Mas ela conseguiu mandar recados para a família dela mesmo após dez anos separada em outro país. Outros historiadores, como João José Reis, já mostraram relações entre a Bahia e a Costa da Mina [em Benin] no início do século 19, mas acho que para o século 17 esta é a novidade. Haviam relações interpessoais em um espaço de distância enorme, é o que mostra o processo de Páscoa. Era uma sociedade separada por um oceano, mas com relações muito próximas, muito fortes”, explica.
A instituição de casamento sofreu adaptações nas colônias. Charlotte conta que os escravos que vinham tanto do interior do Brasil quanto da África podiam se casar novamente, mas só se o primeiro casamento não fosse católico. “O direito canônico vem da Europa e precisa se adaptar no Brasil. Mas isso tem limites, porque [o casamento] faz parte do dogma católico”, afirma.
Além disso, o casamento era um passo importante para a mobilidade social durante o período escravocrata. Segundo Charlotte “tinha uma mobilidade social importante nesta sociedade, primeiro com a alforria, que era mais fácil para escravos urbanos do que para os escravos de fazenda. O casamento podia ser um passo para a alforria, mas podia também ser um passo para a escravidão. Por exemplo, com os indígenas. Quando um índio casava com uma mulher escrava africana, os filhos deste casal seriam escravos. Então, esse tipo de casamento encerrava mais [pessoas] nessa sociedade escravocrata. Não é só uma mobilidade social em direção à liberdade, mas às vezes é uma mobilidade social que leva à escravidão”.
O livro de Charlotte Castelnau-L’Estoile será traduzido para o português e será lançado em breve no Brasil pela editora Bazar do Tempo.

Referências
RFI

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